ontem, numa tentativa de resgatar os pés — e a mim mesma — colei fotos, desenhos e cartas pela parede que abraça a cama pelas costas. insone, encontrei nesse gesto uma ritualização que há tempos não iluminava. a noite fria entrava pela janela, o vento atravessava como um embalo gelado enrijecendo minhas costas. aquela fresta, sutil, tinha a força de um farol: uma linha branca que corta o ar até chegar aqui. eu era adolescente outra vez — ignorando o frio, torta sobre a cama, a blusa do avesso, as meias sujas, um silêncio minando — fumando, revirando fotografias e papéis. como um quebra-cabeça, encaixava harmonicamente fragmentos de história que ainda reluzem amor.
as mãos secas roçavam papéis velhos, exalando cheiro de guardado, ansiosas por memória viva. podia passar horas ali. quando as pilhas acabaram, temi que fosse o fim. então lembrei da casa dos meus pais: os baús pesados, de madeira, berços de tanto passado. breve irei até eles — para reencontrar não só a mim, mas também o ser que é mãe e pai antes mesmo de terem sido mãe e pai.
um envelope ocre, nomeado cartas de amor, tornou-se o centro magnético da noite. ali se enroscavam as que recebi — afagantes — e as que escrevi, mas nunca enviei: rascunhos riscados, vivazes, brutais na vulnerabilidade. declarações como essas são joias, muito mais valiosas que qualquer objeto empoeirado sobre estantes esquecidas. não, não são mantras: isso reduziria sua forma. declarações são âncoras amorosas, abraços impressos em papel. pedaços bonitos de nós que alguém, de fora, viu e fez questão de eternizar.
apegar-me a esses papéis amarelados, com cheiro de sebo, é também me ver pelos olhos de outro. não sei se isso me prende a uma imagem passada ou se me oferece a chance de perceber minhas camadas em constante mutação. poucas cartas, pensei. gostaria de ter mais. seria indelicado pedir? acho que não. talvez até um belo presente de aniversário: receber uma carta.
escrevo cada vez menos, percebo. e acordo com o impulso selvagem de escrever de novo: para todos, sem razão aparente, apenas pelo desejo de ofertar essas joias, essas âncoras, esses abraços envelopados que talvez sejam eternos. começo aqui: reunindo papéis e palavras.
pontiagudos sentimentos ordinários e temidos, provocam a camada mais fina da pele, arranhada. quase que perfuram. ficam ali, atiçando estados de alerta, enquanto parafernálias mentais nada alteram a resistência das pontas afiadas. ardência de querer segurar — como se fosse faca, como flecha — e domar. silenciar a afiadez, como quem nina uma criança: condenado à esperança. ou então, de querer vê-la cumprir sua função perfuradora — que complete aquilo que parece estar por um triz.
olho pro céu. estrelas escondidas nas nuvens. meus sentidos cintilam. o sentimento surge de trás da lua, que minguava minha coragem. a ventania leva algo meu. agora, flutuo. imprevisível amor humano, feito flecha lançada. frios na barriga que entorpecem. desejo não pede licença: é faca que abre tanto quanto encerra. mais carnal que a paixão é ser enganada por um amor sutil. ah, queria. como queria… queria tanto. queria tantas.
o vento sopra, leva o desejo mais ardente e traz o imprevisível. conduz o coração a um caminho arriscado — que não estava nas folhas dos livros, nem em lugar algum. apavora o corpo — agora os pelos saltam arrepiados sobre a pele. relembro clarice: “somos livres, e isso é o inferno”. tenho achado que pensamos que somos livres — e, por isso, um inferno acende ao nosso redor. essa luta incessante: conter a flecha e proteger a pele, ou perfurar-lá de uma vez, crendo que isso é liberdade! que isso é o inferno!
tenho pensado sobre o amor — e outros elementos pontiagudos que, ah, esses sim, são livres. são de ninguém. vou, cada vez mais, sucumbindo a tudo que contorna os vazios — adormecida na entrega do que jamais será preenchido. ensino minha pele a não ser escudo.
como vês: o amor é uma bagunça aguda. vai carregar as coisas, tão certas, na hora em que ele chegar. vai levar tudo que conseguir — chutando as paredes que eu mesma construí. vou me vendar. e dançar com o amor, através das minhas maiores vulnerabilidades.
o amor não basta – já havia escrito isso em outras margens, com tintas desbotadas e promessas em ruínas. outra vez me via em pedaços pobres de alguém desesperadamente frustrada. o que ontem era promessa, hoje jaz como coração esfaqueado. tanto esforço na construção, e um tropeço frágil bastou para derrubar. fervia o tempo entre braços quentes, encantamentos de sereias em mares românticos. perdição humana, raiz falida, desejo movediço. fui, fui, fui para onde me embriagava de estar viva. havia um presente, um passado e um futuro claros, todos girando ao redor da matéria do agora.
delírios sedutores se impunham até mesmo quando eu tocava na parte mais íntima de mim. parecia firme, mas escondia outro olhar, quase imperceptível, a corroer por dentro. fantasiava certezas como quem veste roupas de festa em meio à ventania. mas que porra — deixei o sangue doce subir até a cabeça, e de repente me perguntava: outra vez deixaria de ser por inteira?
e então, por um breve instante, o amor transbordava. era razão e excesso, desculpa para existir em outra ótica. vi meus dedos manso sobre pele dura, uma ternura fértil que acreditava em sombras para nos chamar de luz. poeira do céu parecia destinar nossos entrelaces. sorte, dizíamos sem querer. sorte no amor, mas amor não basta.
o mergulho nas rosas não sustentou o nós. testei verdades até me entregar vendada, e quando caí de costas no vazio, quebrei em mil pedaços que só a mim caberia juntar. implorei, e sei o peso dessa palavra: implorei por um pouco de amor. recebi silêncio frio.
não era apenas um instante que me faltava, era justamente aquele instante, o que mais precisava. ofereci minha vulnerabilidade como oferenda e encontrei ausência. chorei até perder o fôlego, com a estranha sensação de me envergonhar por ser tão inteira. havia camadas: gestos de aproximação que logo se dissolviam, calor que se retraía em gelo. uma dança de distâncias e presenças partidas.
e nesse espaço rarefeito, entre o quase e o nunca, restava a crueza da verdade: amor não basta.
vivaz me vi criar constelações corporais. não sei dançar, mas sinto muito. sei sentir com os poros e órgãos, mas não sei como se dança um sentimento. pulsam os nervos com as dores, cintilam as veias com os amores. nada nunca está parado, mesmo no meu silêncio, uma orquestra ensaia em meu sistema respiratório. eu não sei dançar, mas sei me fingir de pincel e riscar o céu com meus dedos, roubando pedaços de estrelas pra enfeitar meu peito. sei ouvir o silêncio tão bem quanto as músicas, que são tempestuosas faíscas prum corpo intrinsecamente polvoroso, feito para explodir em incontáveis camadas identitárias e se refazer com as cores dos movimentos sinuosos das folhas das árvores que, essas sim sabem dançar. são mestras dos embalos desritmados que compõe coreografias ancestrais, curiosamente inovadoras, sempre surpreendentes. eu não sei dançar, mas sei incorporar folhas inquietas e me deixar levar pelos ventos ordinários do céu de cada dia. essa mania de sentir tanto e de ser filha das árvores, me concede a grandiosa simplicidade de ser conduzida por esses sopros confusos que vagueiam sobre ruas e vidas.
isso também é dançar?
quando vendada, pude, enfim, ver o coração vermelho pulsante que vive no meu corpo, e só nesse efêmero instante que senti teu abraço colossal. transbordante a partir do infinito que é o mundo até o infinito que sou. pela venda, enlaçada em meu rosto, ligeiras lágrimas escorriam - pois, é meu jeito humilde e reverente de agradecer. mesmo que fonte abundante e inesgotável, nem por isso perdem seu valor. cristais que nunca vem à toa, jamais sozinhos. mas eu falava sobre teu abraço. porque mesmo que eu saiba sempre onde te encontrar, cego-me com a pressa desses dias longos que passam tão veloz. e quanto mais o tempo passa, mais difícil fica te receber em mim, mais estranho parece querer teu colo, e caio em falácias sombrias de solidões e medos. me vendar foi assustador, admito que espiei, e que trepidava os pés inseguros. mas era preciso cerrar esses olhos verdes vivos para, no escuro abstrato, te encontrar. não viestes quente, por mais que, em algum momento, tenha sentido um calor visceral - são propriedades singulares que a palavra só confunde, porque és fria, sim, naturalmente. só que o que trazes contigo, em teu coração, que se estende sobre o meu, é um incêndio vividamente amoroso.